O país anda, mesmo que em segredo - sempre há pudor das classes pensantes em manifestar adesão a estas coisas da populaça -, empenhado na reflexão sobre a identidade nacional, absorvido na procura de alguém que a corporize ou tenha corporizado, na demanda desse símbolo último, porque de carne e osso, do pátrio orgulho que estende bandeiras nas fachadas e põe as almas a marchar contra os canhões.
Ao contrário de outros patriotismos que se projectam no futuro, o português tem o passado como horizonte. Urge, pois, fazer a transição. Impõe-se, porém, alguma cautela. Movimentos bruscos podem deitar tudo a perder, aconselha a prudência que nos identifiquemos com o presente antes de ousarmos o porvir.
Temos, assim, um país onde, cada vez mais, prolifera essa ideia liberal de que a felicidade geral resultará do livre exercício de todos os egoísmos, de que o mercado vale mais do que o Estado, de que a cultura é válida enquanto actividade lucrativa.
Temos a Floribella, os Morangos com Açúcar, os programas matinais das televisões. Temos muitos leitores de Paulo Coelho e de Margarida Rebelo Pinto, temos galos de Barcelos, Alberto João Jardim, Filipe La Féria. Temos o teatro de revista, pois, a gargalhada pronta quando alguém diz "merda" ou quando solta ruídos corporais, traques, arrotos ou postas de pescada. Temos o Interior que definha, enterrado desde sempre pela sobranceria litoral, mais enterrado ainda na hora em que os agentes financeiros de antanho assim decidiram, como quando os banqueiros de oitocentos cobravam juros de vinte por cento no país profundo, contra os meros cinco por cento com que ajudavam ao desenvolvimento das urbes costeiras.
Temos coiratos, torresmos e cervejas mini. Caracóis e moelas e pipis. Temos jornais gratuitos que satisfazem a maioria e jornais pagos que desiludem a minoria.
Temos toiros. Temos praças de toiros, forcados, campinos, monárquicos de bigode farfalhudo em torno das arenas.
Temos ignorância para dar e vender, boçalidade para encher mil covas da Iria.
Temos Fátima e fado, pois claro.
E gente que prefere ir à bola a ter comida no prato. Temos dormência nas cabeças e pujança nos punhos. Temos pessoas que cospem no chão coberto de bosta de cão. Somos nação! Temos centros comerciais, cada vez mais. E cidades que caem, património à mercê da erosão, mais em conta do que a implosão. Temos vaidades fúteis que se mostram, talentos que se escondem com vergonha. Temos estupidez plastificada, porque não há estupidez no que é genuíno.
Temos calhaus com dois olhos, quatro olhos cinco seis sete mil olhos. Que falam. E opinam. E tentam ironizar. Sobre tudo e contra todos, porque assim chegamos à tal ideia de que os egoísmos se equilibram, de que a mão invisível nos conduzirá à felicidade terrena, sem que um qualquer estado tiranizante tenha de contribuir para isso.
Portanto, solenemente, proponho, aqui e agora, que esqueçam tudo o que escrevi e me mandem á merda!
Sempre convosco,
Cabrão de Nafarros, Mestre.
Ao contrário de outros patriotismos que se projectam no futuro, o português tem o passado como horizonte. Urge, pois, fazer a transição. Impõe-se, porém, alguma cautela. Movimentos bruscos podem deitar tudo a perder, aconselha a prudência que nos identifiquemos com o presente antes de ousarmos o porvir.
Temos, assim, um país onde, cada vez mais, prolifera essa ideia liberal de que a felicidade geral resultará do livre exercício de todos os egoísmos, de que o mercado vale mais do que o Estado, de que a cultura é válida enquanto actividade lucrativa.
Temos a Floribella, os Morangos com Açúcar, os programas matinais das televisões. Temos muitos leitores de Paulo Coelho e de Margarida Rebelo Pinto, temos galos de Barcelos, Alberto João Jardim, Filipe La Féria. Temos o teatro de revista, pois, a gargalhada pronta quando alguém diz "merda" ou quando solta ruídos corporais, traques, arrotos ou postas de pescada. Temos o Interior que definha, enterrado desde sempre pela sobranceria litoral, mais enterrado ainda na hora em que os agentes financeiros de antanho assim decidiram, como quando os banqueiros de oitocentos cobravam juros de vinte por cento no país profundo, contra os meros cinco por cento com que ajudavam ao desenvolvimento das urbes costeiras.
Temos coiratos, torresmos e cervejas mini. Caracóis e moelas e pipis. Temos jornais gratuitos que satisfazem a maioria e jornais pagos que desiludem a minoria.
Temos toiros. Temos praças de toiros, forcados, campinos, monárquicos de bigode farfalhudo em torno das arenas.
Temos ignorância para dar e vender, boçalidade para encher mil covas da Iria.
Temos Fátima e fado, pois claro.
E gente que prefere ir à bola a ter comida no prato. Temos dormência nas cabeças e pujança nos punhos. Temos pessoas que cospem no chão coberto de bosta de cão. Somos nação! Temos centros comerciais, cada vez mais. E cidades que caem, património à mercê da erosão, mais em conta do que a implosão. Temos vaidades fúteis que se mostram, talentos que se escondem com vergonha. Temos estupidez plastificada, porque não há estupidez no que é genuíno.
Temos calhaus com dois olhos, quatro olhos cinco seis sete mil olhos. Que falam. E opinam. E tentam ironizar. Sobre tudo e contra todos, porque assim chegamos à tal ideia de que os egoísmos se equilibram, de que a mão invisível nos conduzirá à felicidade terrena, sem que um qualquer estado tiranizante tenha de contribuir para isso.
Portanto, solenemente, proponho, aqui e agora, que esqueçam tudo o que escrevi e me mandem á merda!
Sempre convosco,
Cabrão de Nafarros, Mestre.
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